sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Tal vida, tal morte


Pe. David Francisquini
Sacerdote da Igreja do Imaculado Coração de Maria – Cardoso Moreira (RJ)

 Em minha já longa vida sacerdotal, encontro-me com colegas de vocação aqui, ali e acolá. Isso constitui sempre ocasião para animadas conversas, em geral profundas e sérias, a respeito da Santa Igreja e de seus ministros. Mas, se de um lado há muita empatia, de outro há incompreensões que raiam à animosidade, sobretudo quando o assunto versa sobre a atual crise na Igreja.


Findas as conversas, nem por isso os temas nelas tratados, os aspectos psicológicos e as circunstâncias que as cercaram, desaparecem da memória. Eles voltam, com frequência com indagações sobre a natureza e a oportunidade do que se conversou, a maior ou menor cortesia e respeito havidos então no trato, a clareza e a lógica ou a falta delas ao expor as ideias, a coerência ou não dos argumentos apresentados, ou seja, um retrospecto ou balanço.

Não pense o leitor que pelo fato de se tratar de sacerdotes, tais conversas sempre convirjam dentro de uma respeitável cordialidade para um ponto comum, que não poderia deixar de relacionar-se com a maior glória de Deus. No entanto, dada a relatividade de tudo em nossos dias, infelizmente isso de há muito deixou de ocorrer

O fato de se celebrar a Missa tridentina promulgada pelo Concílio de Trento, de se reportar ao Concílio Vaticano I e a todo o passado da Igreja visando à salvação das almas, à glória de Deus e à luta em defesa dos princípios morais, já basta para provocar não poucas dissensões entre as pessoas do clero. E elas tendem a crescer quando aqueles que defendem esse passado santo e glorioso não abrem mão do uso da batina, do barrete ou do chapéu eclesiástico, da faixa e da mantelete, como foi sempre desejado pela Igreja.
Historicamente, a partir da década de 1950, acentuando-se nos anos 1960, as ideias heterodoxas e ambíguas no campo político, social e religioso começaram a grassar nos meios católicos. Além dos costumeiros disfarces, a admissão de posições contraditórias, como a colocação lado a lado do erro e da verdade, não poderia deixar de gerar confusão entre os fieis.

Mas não era só no ambiente dos fiéis. Em uma conversa que certa vez mantive com um padre idoso e experiente, bem formado intelectualmente, disse-me ele que a parte essencial e mais importante da Santa Missa era o “Tomai e comei”…
Retruquei-lhe de boa fé que tal não era o ensinamento da Igreja, pois a Consagração é a parte essencial da Missa, quando se realiza o sacrifício incruento do Calvário, sem o qual não haveria o “Tomai e comei”… Com efeito, as palavras da Consagração, pronunciadas distintamente para a elevação do pão e o do vinho, renovam o santo Sacrifício da Cruz, sendo como que uma lâmina ou um punhal que traspassam a Vítima e A imolam misticamente.

Meu interlocutor retrucou, dizendo que isso remontava ao Concílio de Trento, tendo em vista o combate aos protestantes. Respondi-lhe que há uma Missa votiva às quintas-feiras, na qual se exalta Jesus Cristo Sumo e Eterno Sacerdote. Nela o sacerdote lê um texto da epístola aos Hebreus, referindo-se a Cristo, que não se glorificou a Si mesmo para se tornar pontífice, mas glorificou Aquele que lhe disse: “Tu és meu Filho, hoje te gerei“.
De igual maneira, lê-se em outro lugar: “Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec”.  E ainda nos inteiramos do texto nas Sagradas Escrituras: “Na verdade, todo pontífice é escolhido entre os homens e constituído a favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Sabe compadecer-se dos que estão na ignorância e no erro, porque também ele está cercado de fraqueza. Por isso, ele deve oferecer sacrifícios tanto pelos próprios pecados quanto pelos pecados do povo. Ninguém se apropria desta honra, senão somente aquele que é chamado por Deus, como Arão” (Epístola aos Hebreus 5, 1-4).

Meu interlocutor afirmou então que o texto citado dizia respeito ao Antigo Testamento… Respondi-lhe que a Igreja, ao colocar uma Missa votiva todas as quintas-feiras do ano, faz com que esta passe a ser matéria de fé, mesmo que o texto de São Paulo faça menção aos Hebreus. Isto porque “Lex orandi lex credendi”, isto é — devido a consagrada sentença “Lei de oração, lei de fé” —, devendo pois ser acreditada. Insisti sobre a questão da consagração, acentuando com clareza que a Missa não era uma ceia, mas um Sacrifício propiciatório.

Outra conversa mantive também com um sacerdote igualmente idoso, já bem próximo da morte, que levantou a questão de pessoas desajustadas na vida matrimonial, que se encontram numa situação insolúvel. Segundo ele, a Igreja deveria rever a parte disciplinar concernente à matéria, visando resolver os casos em que as pessoas não podem receber os últimos sacramentos. Lembro-me de ter recortado a ele um fato referido por Santo Afonso de Ligório.

Moralista de renome, esse santo cita o caso de uma jovem que, estando para morrer, deu sinais de conversão e mudança de vida. Ela manifestou então a seu confessor o desejo de ver seu cúmplice, a fim de convencê-lo a abandonar o pecado e mudar de vida. O confessor não se opôs e até insinuou-lhe que, para sair-se bem naquele propósito, praticasse tal obra de caridade para com seu antigo cúmplice.

Aconteceu, porém, que, ao se encontrar com o conluiado, a jovem se esqueceu de todos os bons propósitos. E voltando-se para ele com palavras carinhosas, disse-lhe que ia morrer. E, portanto, iria para o inferno, estava certa disto, mas que não se importava em se condenar. E, dizendo isso, caiu morta. Santo Afonso, a propósito desse trágico desfecho, comenta: para quem se escraviza ao vício impuro, é muito difícil emendar-se e converter-se a Deus de todo o coração.

O mesmo santo refere-se ainda ao seguinte fato: ao pregar um retiro para sacerdotes, um deles que vivia em estado de pecado, acostumara-se a celebrar a Missa naquele estado; contradizendo, portanto, o ensinamento moral de que quem vive em pecado morre nesse estado — “Talis vita, finis ita” (Tal vida, tal morte). Ao celebrar a Missa no dia seguinte, quando o mencionado sacerdote pronunciou ao pé do altar a oração “Judica me Deus...”, ali mesmo morreu e foi julgado.

Sirvam tais lições aos leitores para compreender que há maneiras de ser, de comportar-se e de viver, mediante as quais o próprio pecador procura justificar sua conduta, passando com isso a defender erros, vícios e pecados; procedimentos estes que vão paulatinamente obscurecendo sua inteligência e endurecendo sua vontade, até passar a defender heresias, ainda que camufladas. Lembremo-nos da sábia máxima moral: “Tal vida, tal morte!”

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