Saguão de uma conhecida escola particular de Goiânia. Havia
levado minha filha de dez anos para participar de um torneio interescolar de
xadrez. A instrução que havia recebido era clara: início das partidas às 10
horas. Nada complicado, ou esotérico ou impossível, apenas um breve comando:
início das partidas às 10 horas. Cheguei às 9h45. Às 10h05, minha filha estava
sentada diante de uma cadeira vazia… A sua oponente chegou, esbaforida, quase
20 minutos depois. Ao lado dela, o pai, munido das tradicionais desculpas:
distância, trânsito. Trânsito? No domingo de manhã? Não havia trânsito.
Depois de que a menina se sentou diante da minha filha, como
se nada houvesse, muitas outras crianças ainda chegaram, acompanhadas por seus
pais e suas mesmas desculpas. Todos entravam no auditório cujas portas fechadas
traziam um enorme cartaz onde se lia Não entre. Para evitar me aborrecer mais
ainda com a balbúrdia, fui me sentar longe das portas. Por todo o saguão,
crianças pequenas começavam a correr de um lado para outro, gritando (e
atrapalhando os enxadristas, mas e daí?) sob o olhar indiferente de seus pais,
e contrariando um claro aviso na parede: Não corra, evite acidentes. Enfim,
saímos, minha filha e eu, só para encontrar nosso carro fechado por uma pick-up
que havia estacionado na esquina, sobre a calçada.
No almoço, num grande shopping, famílias corriam para
segurar uma mesa (pouco importando o aviso que indicava ser preferencial),
disfarçando com seus celulares enquanto pessoas com o prato na mão (algumas idosas)
vagavam buscando um lugar para comer. Pedi um sanduíche sem cebola, mas elas
estavam lá, pois o atendente não leu o pedido. No cinema, tive de pedir para a
jovem na minha frente parar de teclar, pois a luz não me deixava ver o filme.
Acabei a noite de volta a meu apartamento, subindo com um cachorro me cheirando
no elevador social – expressamente proibido -, e pedindo silêncio ao meu
vizinho de cima que se imagina cantor sertanejo e estava dando um show
intimista à meia noite.
Enquanto rolava na cama, tentando ignorar o violão
desafinado, tive uma visão. Sim, tudo estava claro agora, tão claro quanto o
celular da moça no cinema. Estava aí, o tempo todo, na nossa frente, no nosso
dia a dia, a origem de todos os males do Brasil. A nossa própria essência como
nação, nossa alma verdadeira, aquela que “olha dentro para fora”, como diria
Machado de Assis. Como podia ser tão simples, afinal, e passar tão
despercebido? A verdade simples e crua é que o brasileiro não é capaz de
cumprir regras! Só isso.
Incapacidade crônica de cumprir regras. Por isso somos o
país com o maior número de leis no mundo – e, como não as cumprimos, nossos
legisladores criam novas leis que por sua vez não serão cumpridas, o que vai
gerar outras leis, num ciclo infinito… Posso falar por horas sobre este tema :
sou professor e há 25 anos e já ouvi (é verdade que nunca tanto quanto agora)
tantas desculpas esfarrapadas de alunos e também de pais para burlar as mais
simples regras do cotidiano escolar. Assim como a menina de dez anos no torneio
de xadrez, que aprendeu na prática com o seu pai que as regras não existem na
verdade aqui, e que qualquer problema se resolve miraculosamente com uma
mentira qualquer – foi o trânsito…
Fui mal na prova porque não estudei – jamais! A culpa é do
professor que me persegue, do bullying que sofro dos meus colegas, da escola
que não me entende, da educação que é repressora, da sociedade, do destino, de
Deus! Ora, meus irmãos, ponhamos as nossas mãos cheias de culpa nas nossas
consciências brasileiras tão enferrujadas e admitamos: somos nós que não
sabemos seguir regras simples e que transformamos esse país tão lindo em um
purgatório perpétuo.
O problema da violência no trânsito é que não cumprimos as
regras do trânsito. Simples assim. Corrupção no governo? Normas que são
burladas, tanto por quem contrata quanto por quem é contratado, diga-se de
passagem. Há milhares de leis, mas não para mim. Eu ignoro, eu dou desculpas,
eu passo por cima. Pode nomear o problema, meu caro leitor, e eu lhe darei a
mesma causa: incapacidade crônica de cumprir regras. Duvida? A crise hídrica
que vai acabar nos matando de sede vem de onde? De leis que são ignoradas – até
as do bom senso, como a dona de casa que gasta centenas de metros cúbicos de
agua para deixar sua calçada brilhando (ah, sim, o lixo ela empurra
discretamente para o vizinho). Mas a calçada estava tão suja! Mas foi só uma
vez! Mas, afinal, todo mundo faz isso, não é mesmo?
Esse processo perigoso e contagioso só vem se agravando… E
vai levar este país, inexoravelmente, para o caos, de onde não nos ergueremos
jamais, como a alma de Poe presa à sombra do corvo, no seu poema famoso. A
menos que algum milagre se opere nas mentes de nossos conterrâneos, e aquele
pai, antes de sacar do bolso alguma desculpa pronta para “proteger” seu filho
de alguma coisa que ele deveria ter feito e que não fez, antes disso, perceba
que está oferecendo à sociedade brasileira mais um cidadão irresponsável,
incapaz de assumir seus erros, que não vai nunca se adaptar a um emprego (sim, em
que há regras!), e que, se por nossa infelicidade, for aprovado num concurso
público qualquer não vai se especializar em desviar as verbas públicas para seu
próprio cofre.
Estamos morrendo nas ruas, nos carros, morrendo de fome, de
raiva e de sede (sábio Caetano) simplesmente porque não ensinamos nossos filhos
a cumprir as leis que regem a vida em sociedade. E lamento constatar que não
estamos nem perto de começar a fazê-lo agora…
Há alguns anos, entrei numa estação de metrô em Estocolmo, a
tão civilizada capital da tão primeiro-mundista Suécia, e notei que havia entre
muitas catracas comuns uma de passagem livre. Questionei a vendedora de
bilhetes o porquê daquela catraca permanentemente liberada, sem nenhum
segurança por perto, e ela me explicou que era destinada às pessoas que por
qualquer motivo não tivessem dinheiro para a passagem. Minha mente incrédula e
cheia de jeitinhos brasileiros não conteve a pergunta óbvia (para nós!): e se a
pessoa tiver dinheiro, mas simplesmente quiser burlar a lei?
Aqueles olhos suecos e azuis se espremeram num sorriso de
pureza constrangedora – Mas por que ela faria isso?, me perguntou. Não lhe
respondi. Comprei o bilhete, passei pela catraca e atrás de mim uma multidão
que também havia pago por seus bilhetes. A catraca livre continuava vazia, tão
vazia quanto minha alma brasileira – e envergonhada.
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(Décio Tadeu Orlandi, bacharel em Letras pela USP e mestre
em Literatura pela UFG. Venceu o Prêmio Casa de las Américas (Cuba) na
categoria Melhor Romance, em 1994. Atualmente é coordenador pedagógico do
Ensino Médio no Centro Educacional Sesc Cidadania)
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