sexta-feira, 17 de junho de 2016

Supermercado da fé


Padre Inácio José do Vale


            “O movimento neopentecostal deve ser rejeitado por todo cristão que preza pela ortodoxia bíblica. E as pessoas engodadas pelos seus ensinos devem ser admoestadas com educação, firmeza, amor e dentro da Palavra de Deus. Se houver resistência, não vale a pena persistir com eles, faça a sua parte e deixe o resto com Deus. A ortodoxia sempre teve a heterodoxia como opositora” (1).
Rev. Daniel Durand

Apologista cristão, graduado pelo Instituto Cristão de Pesquisas e Bacharel         em Teologia pela Faculdade Kurios.


Fiéis de igrejas neopentecostais abandonam tratamento médico e, quando a condição deles piora, recorrem ao Sistema Público de Saúde – que é sustentado pelo mesmo Estado que isentam as igrejas de impostos e permite a construção de templos irregulares.
A Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo não tem estatísticas que apresentem a quantidade de pacientes que abandonaram o tratamento ou os motivos para essas desistências. Porém, em visita a 12 unidades de saúde em diferentes regiões da capital, a reportagem ouviu em pelo menos sete delas relatos de médicos, enfermeiros e agentes de saúde que já lidaram com situações semelhantes. “Muitas vezes, não é o líder religioso que orienta a abandonar o tratamento – é o próprio paciente que, em um processo de negação de sua doença, negligencia os cuidados médicos”, afirma Alexander Moreira-Almeida, professor de Psiquiatria da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Para Elder Cerqueira Santos, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), é o discurso religioso que leva as pessoas a abandonar a medicina. “Se a causa é espiritual, a cura também é. Para alguém que está em sofrimento, o discurso dogmático da igreja é mais consolador”.
A questão não é exclusiva ao Brasil: um estudo divulgado em 2011 pela Universidade do Texas indicou que a taxa de mortalidade infantil era maior em comunidades com fiéis que frequentavam igrejas pentecostais e outras congregações cristãs mais conservadoras. Em 2012, o adolescente Austin Sprout, de 16 anos, morreu por causa de uma infecção causada por apendicite depois que a família se recusou a ir ao hospital. Eles frequentavam uma igreja neopentecostal do estado do Oregon. Os pais, Russel e Brandi Bellew, foram condenados a cinco anos de liberdade condicional. E esse não foi o primeiro caso envolvendo a mesma igreja. Também em 2012, uma mulher foi sentenciada a dois anos de prisão depois de escolher tratar o diabetes do filho de nove anos com orações. E, em 2011, o casal Dale e Shannon Hickman foi condenado a pouco mais de seis anos de prisão depois de não buscar auxílio médico para o filho prematuro, que faleceu em casa em poucas horas.


Ignorância e fanatismo

Há um mês frequentando cultos de cura no Templo de Salomão, o marceneiro Ricardo Costa Alves, de 45 anos, já conseguia enumerar as melhoras que teve desde que sofreu um AVC. “Agora eu consigo andar sem bengala, já tomo banho e me visto sozinho”.  Ele não atribui a evolução do seu estado aos oito remédios que toma todos os dias, nem à acupuntura que começou a fazer e já pretende abandonar. “Com certeza é resultado das orações. As correntes que fiz foram muito importantes. Da igreja eu não saio mais. Só o remédio não adianta nada para mim”, diz.
Contatada, a assessoria de imprensa da Igreja Universal afirmou que não recomenda que os fiéis negligenciem os tratamentos convencionais: “Ao defender preceitos religiosos e atos de fé no auxílio aos enfermos, a Universal sempre destaca a importância da rigorosa observância dos tratamentos médicos prescritos. Jamais devem ser desprezadas as recomendações dos profissionais da saúde”.  Mas nem todos os pastores parecem concordar com o posicionamento oficial. Em um dos cultos presenciados pela reportagem, o bispo Francisco Decothé fez questão de dar a sua opinião sobre a medicina ao conversar com uma fiel que havia recebido diagnóstico fatal de câncer de pulmão. “Existem muitos médicos que têm o demônio. Não são todos, mas são muitos”, disse o religioso.
Em setembro do ano passado, a Igreja Universal foi condenada a indenizar o fiel J.N.M., portador do vírus HIV, em R$ 300.000 por danos morais. Ele procurou a igreja após o conselho de amigos. “Ele viu na igreja a saída para um problema que a medicina não conseguia solucionar”, conta o advogado Guilherme Pavanello Ortiz. Após ir a cultos, orar e ofertar bens a igreja – ele doou uma televisão e um computador. – J.N.M. procurou um pastor e foi aconselhado a abandonar os remédios e a deixar de usar camisinha nas relações sexuais. Dois meses depois, foi internado com pneumonia e passou 40 dias em coma induzido. A esposa também foi infectada pelo vírus. Na ação impetrada no Rio Grande do Sul, a defesa alegou que a Universal se aproveitou do estado de fragilidade do fiel. A igreja, no entanto, negou que o tivesse orientado a abandonar o tratamento e entrou com um recurso, que foi negado. “É um caso exemplar, uma decisão importante que vai abrir os olhos da Universal para o fato de que não é qualquer prática que sairá impune”, diz Ortiz.
Acostumado a lidar com pacientes que unem a cura religiosa ao tratamento, Rodrigo Lima, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, afirma que o médico precisa respeitar a posição do paciente. “Se o médico assume uma posição de confronto com a crença da pessoa, ela vai abandonar o tratamento. A crença é muito mais forte do que a relação do paciente com o médico. O grande ponto é ter um discurso conciliador.” Mas se a fé é ferramenta importante, mais essencial é a presença do Estado em lugares negligenciados. “Muitas pessoas são levadas pelo desespero e buscam qualquer coisa para diminuir o sofrimento”, diz o médico Abrão José Cury, presidente do Departamento de Clínica Médica da Associação Paulista de Medicina.
O infectologista especializado no tratamento de AIDS, o médico Artur Timerman já presenciou o abandono de vários pacientes, inclusive de pessoas próximas do seu convívio familiar. “Muitas vezes, parte do interesse dessas igrejas é econômico. Eles encaram o médico como concorrente pelo dinheiro daquela pessoa. O que ela vai gastar com tratamento é um dinheiro que não vai entrar na igreja.” Na opinião de Timerman, quando o discurso de embate religioso é maior que o de conciliação, o único prejudicado é o paciente. “Estamos todos no mesmo barco. Temos que remar para frente, não para trás” (2).
“Quando a religião organizada torna-se irracional e intolerante, incentiva o fanatismo, sendo cúmplice da ignorância e do obscurantismo”, afirma o escritor e jornalista britânico Christopher Hitchens (3).


CONCLUSÃO

No supermercado da fé a indústria da doença é muito lucrativa. A cura é um mercado e a saúde é uma grande mercadoria. Nesse capitalismo religioso, ou seja, na Teologia da Prosperidade: “O quanto pior, melhor”. O lucro é certeiro, rendoso e progressivo devido à miséria, a dor, o sofrimento, a perturbação, o desequilíbrio emocional, a depressão, o desespero do desempregado, na crise sentimental, na separação conjugal, na crise familiar, no medo da inveja e da macumba, na busca de se libertar dos vícios, na ganância por bens materiais e na posse da felicidade a qualquer preço!
Unidos a esse supermercado da fé, o jogo de poder, a luxúria, a ambição desenfreada por seus interesses materialistas numa política sem ética e sem escrúpulos. É um grande negócio unir religião, política e miséria. Templos como comitês partidários, o lugar do escroque “sagrado” e líderes religiosos milionários em detrimento da pobreza de multidões. E tudo isso com a bênção do Estado.


Pe. Inácio José do Vale
Professor e conferencista
Sociólogo em Ciência da Religião
Religioso da Fraternidade da Visitação de Charles de Foucauld
E-mail: pe.inacio.jose@gmail.com



Notas:

(1)http://anti-heresias.blogspot.com.br/2009/01/objees-bblicas-ao-neopentecostalismo.html
(2) Galileu, Maio de 2016, pp. 38-49.
(3) Diário do Vale, 15/02/2016, p 4.


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