quinta-feira, 9 de junho de 2016

As lágrimas de Jesus sobre ‘Amoris Laetitia’.


Josef Seifert*

 Muitas vozes de alegria e louvor têm respondido em todo o mundo ao último documento do Papa Francisco: Amoris laetitia. Este texto contém indubitavelmente numerosas passagens muito belas, e profundas verdades que dão glória a Deus e alegram o leitor. O texto irradia o amor misericordioso de Deus e do Papa por todos os homens e contém grandes tesouros de sabedoria.

Apesar de todo esse júbilo em torno da “Alegria do Amor” e de todos os louvores tecidos por bispos e cardeais, estou convencido de que Jesus e sua Santíssima Mãe choram sobre algumas passagens da exortação apostólica e, em particular, sobre aquelas que terão o máximo efeito.
Tais passagens – que às vezes estão escondidas em poucas linhas e notas de rodapé do oitavo capítulo – substituem pela proposição oposta algumas das mais belas palavras misericordiosas e mais severas advertências de Jesus, como também algumas doutrinas e partes da disciplina sacramental da Igreja. Em minha opinião, portanto, essas passagens arriscam dar lugar a uma avalanche de consequências muito prejudiciais para a Igreja e para as almas.
Sim, na verdade, Jesus não condena a mulher adúltera que, segundo a lei de Moisés, merecia a morte, mas lhe diz: “Vai e não tornes a pecar”.
Seu sucessor Francisco, citando o Sínodo, diz à mulher adúltera que, embora continue a pecar gravemente, não deveria sentir-se excomungada, nem é necessário converter-se de seu pecado de adultério para ser um “membro vivo da Igreja”: “[Os casais “irregulares”] não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho” (AL, 299). O que o Papa diz ali não é falso e pode ser um conforto para esses casais saberem que a misericórdia de Deus está sempre presente; contudo, está totalmente ausente o “vai e não tornes a pecar”, falta o apelo à conversão do pecado e o fato de que se a mulher adúltera não se converter, ela cessa de ser “um membro vivo da Igreja” e não vai “no caminho da vida e do Evangelho”, embora possa sempre tomar esta via aberta a todos através da confissão e do arrependimento.
Com toda a sua misericórdia, Jesus adverte-nos explicitamente 15 vezes que existe o perigo da condenação eterna, se persistirmos em pecado grave; enquanto o seu sucessor nos diz que “ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem” (AL, 297). (Embora, no contexto, não esteja claro a que condenação “para sempre” o Papa se refere, quase impõe-se a interpretação de que o texto significa que não há nem inferno nem perigo de se acabar nele, uma vez que o Papa não permitiu ou enunciou qualquer penalidade temporal aos casais irregulares).
Jesus diz à mulher adúltera, e a nós pela formulação oposta através do apóstolo Paulo, que nenhum adúltero (não convertido) entrará no reino de Deus, e, portanto, que serão “condenados para sempre”: “Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus? Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus”(I Cor. 6,9-10).
O Papa Francisco diz também aos adúlteros que eles possivelmente já vivem na graça de Deus e que podem crescer nela através da Sagrada Eucaristia, mesmo sem retorno/conversão da sua vida adúltera (apenas com a ressalva de que esse retorno ao casamento católico é muito desejável) (AL, 297). [1]
Considerando que o padre jesuíta Antonio Spadaro é um estreito colaborador do Papa, não se pode duvidar quando ele diz que Francisco removeu todos os “limites” do passado, mesmo na “disciplina sacramental”, para os casais “chamados irregulares”, pelo que, acrescenta o historiador Alberto Melloni, esses casais “tornaram-se destinatários da Eucaristia” [2].
Jesus, através de seu Apóstolo, diz à mulher e ao homem adúlteros que eles devem examinar-se antes de receber o Corpo e o Sangue de Cristo, se não quiserem cometer um sacrilégio e comer e beber a sua própria condenação:
“Portanto, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpável do corpo e do sangue do Senhor. Que cada um se examine a si mesmo, e assim coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que o come e o bebe sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação” (I Cor 11, 27-29).
Em outras palavras, trata-se de cometer um sacrilégio e colocar em risco a própria alma.
O Papa Francisco, que não menciona uma só vez o possível sacrilégio ou o perigo para as almas daqueles que comungam indignamente, diz ao adúltero ou àquele vive numa união irregular que, em determinadas circunstâncias a serem decididas caso por caso, ele pode aceder à Sagrada Comunhão sem mudar a própria vida e continuando a viver como adúltero ou concubino [3].
Deus ordena à mulher adúltera e a cada um de nós, absolutamente, sem condições: “Não cometerás adultério!”
O Papa Francisco ensina que esses mandamentos divinos são a expressão de algo ideal (Zielgebote) que poucos podem obedecer, como se se tratasse de meros conselhos evangélicos para alguns que procuram uma maior perfeição, e não mandamentos rigorosos para todos.
Deus diz sem condições: “Não cometerás adultério!”
O Papa diz que se a mulher adúltera não puder se separar do adúltero (quando, por exemplo, a separação do casal unido civilmente provocasse danos aos filhos), mas vive com ele como irmã (coisa que a Igreja Católica sempre exigiu em tais situações), ela segue um estilo de vida que pode causar “infidelidade” própria ou de seu parceiro. Em tal caso, ou seja, de risco de infidelidade entre dois adúlteros, diz o Papa ser melhor que a mulher adúltera não viva com ele como irmã, mas que tenha relações íntimas com seu parceiro. Seria então melhor continuar a viver em adultério, e não como irmão e irmã. Em favor dessa tese, o Papa cita textos magisteriais que se referem todos eles a casamentos legítimos e não a “uniões irregulares” (sobretudo no que diz respeito à abstenção temporal limitada, em conformidade com a Humanae Vitae). Tais textos, aliás, não permitem que num casamento legítimo se evite o perigo de infidelidade cometendo um pecado.
“Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações em que «o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar» [Nota 329: João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 84: AAS 74 (1982), 186. Nestas situações, muitos, conhecendo e aceitando a possibilidade de conviver «como irmão e irmã» que a Igreja lhes oferece, assinalam que, se faltam algumas expressões de intimidade, «não raro se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,51)” (Amoris laetitia, n° 298). [4]
Como podem Jesus e sua Mãe Santíssima ler e comparar essas palavras do Papa com aquelas de Jesus e de sua Igreja sem chorar? Choremos, portanto, com Jesus, com profundo respeito e carinho pelo Papa, e com a dor profunda de ter que criticar seus erros! E oremos para que o próprio Papa ou um Santo Concílio revoguem essas falsas doutrinas contrárias às santas palavras de Cristo – que nunca morrerão – e às santas doutrinas da Igreja!
Não é possível, como propõem alguns excelentes cardeais, ler essas poucas, mas mais possantes palavras da Amoris Laetitia, em um sentido que esteja em harmonia com as palavras de Cristo ou com as doutrinas da Igreja!
Alguém poderia perguntar-me como eu, um mísero leigo, posso criticar um Papa. Respondo: o Papa não é infalível se não falar ex cathedra. Vários Papas (como Formoso e Honório I) foram condenados por heresia. E é nosso dever sagrado – por amor e misericórdia em relação a tantas almas – criticar nossos bispos e mesmo o nosso caro Papa, se eles se desviarem da verdade e se os seus erros prejudicarem a Igreja e as almas. Esta obrigação foi reconhecida na Igreja desde o início.
São Paulo resistiu com palavras duras e enérgicas ao primeiro Papa, São Pedro, quando ele, em sua decisão prática, se afastou da verdade e da vontade de Deus. Santo Atanásio resistiu ao Papa Libério, que assinou uma declaração contendo a heresia ariana ou semi-ariana, que negava a verdadeira divindade de Jesus Cristo. Este Papa, diante da crítica de Santo Atanásio, o excomungou injustamente, cometendo um erro contra o qual pessoas leigas levantaram suas vozes, tendo sido corrigido mais tarde. E hoje a Igreja, que deve em parte a esse Santo a preservação de sua fé, celebra a sua festa em todo o mundo.
Leigos resistiram ao Papa Honório, que mais tarde foi condenado por heresia por ter-se declarado a favor da heresia monotelita (que negou as duas naturezas e as duas correspondentes vontades, humana e divina, da mesma pessoa de Jesus Cristo). Leigos protestaram contra a heresia do Papa João XXII sobre a visão beatífica, uma heresia que foi condenada na bula Benedictus Deus pelo seu sucessor.
Sigamos então, sem medo, esses exemplos sublimes de amor pela verdade e pela Igreja, e jamais aprovemos, se virmos que Pedro caiu em erro. O próprio Papa Francisco nos exortou a fazer exatamente isso e a criticá-lo em vez de mentir para o mundo católico ou de adulá-lo. Levemos a sério suas palavras. Mas façamo-lo humildemente, e só por amor a Jesus e a sua Santa Igreja, para enxugar as lágrimas de Jesus e glorificar a Deus in veritate.


* * *
[1] “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, «aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor» [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia «não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos» [ Ibid., 47: o. c., 1039]” (Amoris laetitia, nota 351).
[2] Cf. Sandro Magister, “Francesco e Antonio, una coppia in ottima Compagnia”, http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1351273
[3] AL nº 306.
[4] Esta referência à fidelidade na Gaudium et Spes refere-se apenas ao casamento e não, como na AL, aos relacionamentos extraconjugais. Não conheço nenhum outro texto eclesiástico no qual se fale da fidelidade ou da infidelidade entre adúlteros.

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Josef Seifert*  - Membro vitalício da Academia Pontifícia para a Vida, ex-reitor das Academias Internacionais de Filosofia do Liechtenstein e da Universidade Católica do Chile e atualmente catedrático de Filosofia na Academia Internacional de Filosofia–Instituto de Filosofía Edith Stein, de Granada (Espanha), o Prof. Josef Seifert, nascido em Salzburg em 1945, é considerado um dos maiores filósofos contemporâneos. Entre suas publicações contam-se mais de 20 livros e 330 artigos científicos. Seifert difundiu privadamente uma crítica acurada e lúcida à Exortação Apostólica Amoris Laetitia, que agora concordou em tornar pública.

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FONTE: http://www.corrispondenzaromana.it/le-lacrime-di-gesu-sulla-amoris-laetitia/

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