Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
Caríssimos irmãos e irmãs,
O evangelho das tentações de
Jesus do primeiro domingo da Quaresma nos recorda que o batismo não isenta o
que crê da prova. Na nossa vida cristã, a tentação é verificação necessária das
intenções do coração e da pureza da fé. Escolher ser e viver o batismo
significa a coragem de renunciar às seduções que provocam o que crê a se
separar “daquilo que sai da boca de Deus”.
O cristão é vocacionado a seguir o exemplo de Jesus, novo Adão, tentado pelo diabo, mas vitorioso sobre as seduções do mal. Eis aí o porquê vemos profissão de fé na primeira leitura (Dt 26,4-10), pois o memorial do Êxodo, acontecimento fundante e fundador, situa-se a partir de então no próprio coração do culto bíblico. Da mesma forma que hoje o memorial Pascal de Cristo é fonte e cume da liturgia cristã. Se os israelitas relembravam a sua Páscoa em forma de um “credo”, os cristãos aprendiam o credo neste período. Hoje, mais do que nunca, somos chamados a aprofundar o nosso “credo”, nos preparando para a noite mais iluminada de nossas vidas. Somos verdadeiros seres libertados, e libertados da morte por Jesus (cf. Rm 8,10).
Jesus revive em sua vida a vida do povo, dos quarenta, conhece
de perto a tentação e as seduções diabólicas que seu povo sofreu e que ainda sofremos,
mais importante ainda: Ele vence o tentador! Jesus vence, pois confia
incondicionalmente no Pai, tornando seu único guia e se alimenta de tudo que
vem d’Ele. Precisamos saber ouvir o Pai das misericórdias, que nos chama neste
ano de modo especial. Precisamos ir ao encontro daqueles que precisam, mas
irmos de coração aberto, para abrirmos também nós os nossos braços e acolhermos
em nossa vida o outro, que é a imagem e semelhança de Deus.
Se o homem e a mulher caem no pecado é porque se deixaram
seduzir por aquele que divide e quer dividir-nos de Deus, o Diabo. O Diabo quer
nos convencer e usa de argumentos falazes e enganadores. Lembremos que Jesus o
vence também por estar cheio do Espírito Santo, pleno, cheio de Deus.
Precisamos nos plenificar em Deus, e isso, por meio do Espírito Santo é
possível desde o dia do nosso Batismo e mais, vivenciando os sacramentos.
Ninguém pode ignorar que na hora da tentação o único meio de não cairmos é
agarrar-nos em Jesus, à palavra de Deus, que está junto de nós, na nossa boca
e, principalmente, no nosso coração, crer n’Aquele que Deus ressuscitou dos
mortos e invocar o nome do Senhor para que nos salve. Afinal, é Ele que nos
conduz dia a dia para sua Páscoa, de que a Eucaristia é memorial e penhor.
A luta hoje é grande para cada um de nós. As tentações que
precisamos vencer em nosso tempo são como no passado, mas muitas vezes
elaboradas, tirando a nossa esperança n’Aquele que devemos colocar todo o nosso
ser. Quantas vezes cremos mais em pseudodeuses como o poder, o dinheiro, êxito
social ou profissional, ciência, técnicas, líderes políticos e partidos,
ideologias! Para muitos, e muitas vezes, ocupam o lugar de Deus.
Neste Ano Jubilar da Misericórdia, o Papa Francisco nos pediu em
sua Mensagem da Quaresma: “a Quaresma deste Ano Jubilar é um tempo favorável
para todos poderem, finalmente, sair da própria alienação existencial, graças à
escuta da Palavra e às obras de misericórdia”. Infelizmente, orgulho, egoísmo e
autossuficiência hoje imperam e nada mais vemos na providência divina e nem
sequer vemos mais Deus como referência em nossas histórias, parecendo até que
Ele impede o homem de ser feliz e livre. Cada vez mais o homem se distancia de
Deus e do ser realmente humano e, por isso, a humanidade está cada vez mais
triste, mais sem amor, sem respeito pela justiça e pela dignidade humana do
outro. Precisamos tomar posse da verdade: tudo que temos e somos é de Deus,
somos administradores desta grande casa, como lembrava o Santo Padre em sua
Carta Encíclica “Laudato Sì”, sobre o cuidado da casa comum. Como estamos
partilhando as coisas e como estamos cuidando? Será que o que cuidamos é
benefício exclusivo “meu” ou dons de Deus para todos? Eis algo a refletirmos
nesta Quaresma rica em misericórdia. Ainda mais recordando que o tema da
Campanha da Fraternidade toca justamente nesse assunto: “Casa Comum, nossa
responsabilidade”.
Orgulho e autossuficiência fecham o caminho do ser humano a
Deus, levando-o a um vazio cada dia maior, pois terá o coração fechado e que se
preenche com coisas e não de Deus. Daí estar sempre num vazio maior e buscando
desenfreadamente coisas e coisas, e a tratar o outro como coisa, e coisificam a
vida, sem mais vivê-la. É um verdadeiro vício que torna a vida toda uma
verdadeira droga! É preciso ser curado, não viciado! Precisamos lutar contra o
vício por meio de atitudes diárias. Vencer cada dia até chegar o dia em que
estaremos sarados com Aquele que preenche e nos dá um novo entusiasmo na vida
que se transborda, pois o Amor de Deus é transbordante, que nunca se cansa de
se dar ao outro.
Buscam muitas curas hoje, mas a maior é o testemunho! O
maior milagre que precisamos nesta Quaresma é o mesmo de Madre Teresa: viver
simples, em lugar quase insignificante, mas fazendo coisas extraordinárias. Na
cidade, durante a trezena de São Sebastião vimos e vemos sempre o milagre vivo
de pessoas que lutam, que se emocionam, que vivenciam a fé e que nos dão razões
para crer que milagres existem; somos o grande milagre que acontece, e podemos
colocar no altar de Deus nossas vidas para que sejam transbordantes da
misericórdia deste Deus ternura, deste Deus que nos olha com carinho, que não
faz acepção de pessoas.
Este Primeiro Domingo da Quaresma nos convida, portanto, a ver a
lógica e a pedagogia de Jesus, que pautou cada uma das suas escolhas pela lógica
de Deus. Seria esta a nossa lógica hoje? Como vivemos hoje? Será que estamos
prontos a deixar a nossa área de conforto, de comodidade? Será que pagamos o
justo salário às pessoas? Será que basta sermos assistencial, ou temos que ser
vivencial? Dentro de cada um de nós existe este lado dominar, autoritário, de
termos mais razão do que o outro. A catequese sugere também um caminho que não
é o diabólico, mas o do serviço simples e humilde que Jesus propôs em suas
palavras e atos concretos.
Muitos ainda hoje usam “Deus” como espetáculo, para angariar
aplausos para si mesmos! Porém, não se deve utilizar Deus em proveito próprio,
como vaidade e êxito pessoal. Eis o porquê em procurar o verdadeiro pão para
nos alimentar e enfrentar as tentações do dia a dia. Pão que pedimos ao rezar a
oração dominical – Pai Nosso – “o pão nosso de cada dia nos dai hoje…”.
Façamos uma releitura desta oração à luz do Evangelho deste primeiro domingo:
dai-nos o precioso pão para que neste dia eu possa, com Tua força e luzes,
ultrapassar a tentação!
Saibamos que Jesus não está só no deserto, nós também não
estamos, pois se Lucas esclarece que o Espírito Santo o conduziu, temos a
certeza certa de que Ele também nos acompanha. Se o diabo é forte, Jesus é mais
forte porque ouve a Palavra e a vive, se alimenta dela, instalando o Reino
novo. Com Jesus, vemos o verdadeiro rosto de Deus: sua força e poder é o amor,
amor que Jesus também levará até a morte e morte de Cruz.
Precisamos do Pão da vida, Pão que nos dá sentido de viver, e
viver em Deus nos preenche os vazios que o mundo, mais do que nunca, nos faz
sentir. Hoje temos um mundo que promete muito, que faz com que pensemos
muito rápido e pouco nos preenche, a não ser de coisas que não são plenas.
Jesus, filho de Deus, não se apega a este título e usa o poder não pela lógica
do homem, mas pela lógica de Deus. Deus nos ama e não precisamos pedir provas,
pois o estarmos vivos é um ato carinhoso de Deus por cada um de nós, porque
cada batida de nosso coração é um dizer de Deus para mim e para você: “eu te
amo, eu confio em você, você vencerá as tentações”! Por isso mesmo, podemos
dizer que Deus jamais se cansa de nos perdoar, pois nunca se cansa de nos amar!
Tenhamos fé, esperança, amor, Palavra de Deus para que sejamos iluminados e
assim vençamos as tentações que nos vêm do diabo ou das intempéries da vida.
Como Jesus, não escolhemos o deserto, mas não estamos sós, temos
o Espírito Santo e assim lutamos contra o espírito do mal. O deserto nosso,
muitas vezes criado por nós devido o nosso laxismo, desencorajamento, desejo de
fuga e não buscar forças para o combate. No entanto, com Jesus sabemos que é
possível a travessia neste deserto. O Espírito nos acompanha e nos fortalece.
Neste grande retiro que é a Quaresma somos chamados a refletir e a reavivar a
nossa esperança, nossa fé e nossos atos de misericórdia, sejam corporais como
espirituais.
A Campanha da Fraternidade Ecumênica também nos ajudará
atravessar estes desertos e as suas tentações que nos atingem hoje. A CFE/2016,
que iniciou na Quarta-feira de Cinzas, nos convida a sermos responsáveis pela
casa comum (Tema: “Casa comum, nossa responsabilidade”) e sermos promotores da
justiça (Lema: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual
riacho que não seca”, Amós 5,24). De modo concreto, podemos ver o objetivo
geral que é “Assegurar o direito ao saneamento básico para todas as pessoas e
empenharmo-nos, à luz da fé, por políticas públicas e atitudes responsáveis que
garantam a integridade e o futuro de nossa Casa Comum”. Parece algo muito
simples, mas vendo nossas realidades observamos o quanto longe estamos de uma
real vida digna a todos. Precisamos, como cristãos católicos, estar inseridos
neste campo e transformar este mundo que Deus nos deu para cuidarmos. Temos a
tentação de dizer que isso não é problema nosso! Contudo, é um problema sim
nosso e da nossa casa, para o bem comum de todos os que nela moram e são
chamados a cuidar. Nesse sentido podemos incluir também o combate ao aedes
egipti, que tem trazido enormes preocupações para nossa população, e para
combatê-lo supõe a unidade de todos. Eis um ato muito concreto nesta CFE.
Consiste num direito humano fundamental termos o saneamento
básico, algo que só será possível quando juntarmos as forças entre sociedade
civil e poder público em um planejamento e na prestação de serviços e de
cuidados. Uma vez que a questão do Saneamento afeta não apenas católicos, mas
todas as pessoas, independente da fé que professam, por isso mesmo tratar-se de
uma campanha ecumênica. Mais ainda: uma campanha dirigida a toda sociedade,
porém promovida pelos cristãos! O abastecimento de água potável, o esgoto
sanitário, a limpeza urbana, o manejo de resíduos sólidos, o controle de meios
transmissores de doenças e a drenagem de águas pluviais são medidas necessárias
para que todas as pessoas possam ter saúde e vida dignas. Por isso, há que se
ter em mente que “justiça ambiental” é parte integrante da “justiça social”. É
o que o Papa Francisco, na Laudato Si´, dizia de uma educação ecológica
integral, afinal não se trata de uma questão apenas ecológica, ou apenas
social, trata-se de um conjunto onde o que está em jogo é a vida. No ano
passado fizemos a proposta, como resposta ao documento ecológico do Papa
Francisco, de plantar todos os meses uma quantia de árvores em nossa cidade.
Infelizmente, as dificuldades das licenças e de locais acabaram não deixando ir
avante esse projeto. Quem sabe nesta CFE retorne também isso. Também a nossa
responsabilidade pela limpeza, pelo lixo, pela água parada, enfim, pelo
ambiente onde estamos, ao mesmo tempo em que exigimos do poder constituído a
sua responsabilidade.
Eis aí um desafio deste Primeiro Domingo da Quaresma: atravessar
os desertos da nossa vida. Enfrentar as tentações, inclusive daquela tentação
de que este problema não é meu, é do governo, é do estado, é do município ou
outro órgão. Mas tomarmos posse do Reino significa transformar o mundo que nos
foi dado por Deus e cuidar dele com todo o nosso dever, pois deste cuidar
depende toda a vida do planeta, da nossa casa comum. Por onde começar? Em mim,
em você, em cada um de nós, depois em nossa família, em nossa comunidade, em
nossa cidade, em nosso Estado e assim por diante. Possamos nos alimentar do
verdadeiro Pão da vida para sermos transmissores de vida, e de vida em
abundância (cf. Jo 10,10b).
Com esta coragem de fé para caminharmos sempre pra frente,
iremos nos transfigurar e transfigurar o mundo, como nos recordará o Segundo
Domingo da Quaresma.
Rezemos: “Pai Santo, Pai querido, Pai amado, que converteis a
vós os corações dos que creem, escutai a nossa súplica: fazei-nos abandonar as
veredas dos erros, da ignorância, do medo de nos envolver, das faltas, a fim de
que possamos caminhar atrás de Cristo, vosso Filho, no caminho que conduz à
vida e vida plena; fazei que, fiéis às promessas do Batismo, vivamos com
coerência a nossa fé, testemunhando com coragem a verdade da vossa palavra
viva, em cada gesto concreto do dia a dia, alimentados pelo pão da vida,
possamos nós saciar a fome daqueles que a tem”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário