Prof.: Carlos Ramalhete
Professor de filosofia e funcionário público
Colunista do jornal “Gazeta do Povo”
A liturgia é, como a Fé e demais
graças, um presente de Deus. E, como fazemos com as graças, temos a tendência
de estragar tudo, de trocar nossa progenitura por um prato de lentilhas e a
Eternidade por uma alegriazinha boba qualquer agora. Para piorar a situação, os
avanços tecnológicos exacerbaram a tentação de atrapalhar a liturgia. E quando
à natureza humana e à sua amplificação — para o bem e para o mal — pela
tecnologia se junta a crise litúrgica que seguiu o Concílio Vaticano II, com
invencionices delirantes tomando o lugar do que manda a Igreja e maus hábitos
se instalando e sendo tratados como a regra, a situação fica realmente difícil.
Ensinou-nos o Santo Padre Bento XVI que, das más modas que seguiram a reforma litúrgica paulina, a mais grave é a celebração da Santa Missa com o padre virado ao contrário, enfiado atrás do altar e olhando para as pessoas, substituindo a multidão que se dirige a Deus por um círculo fechado em si mesmo.
“Círculo fechado em si mesmo” é
exatamente o que o Pecado Original faz de cada um de nós. Adão, que antes da
Queda referia-se a Eva como “carne da minha carne, sangue do meu sangue”,
imediatamente após a Queda tratou-a como “a mulher que pusestes ao meu lado”.
Ele se afastou dela, fechou-se em si mesmo. E a liturgia, decididamente, não
pode ser algo fechado. Ao contrário, ela é e tem que ser percebida como a maior
de todas as aberturas: a abertura do temporal ao Eterno, do humano ao divino,
do finito ao Infinito.
Os outros erros e problemas
litúrgicos são, em enorme medida, frutos do erro tão bem apontado por Sua
Santidade o Papa. É quando o padre, enfiado atrás do altar, vê-se olhando para
o povo que a humaníssima tentação de agradar a todos, de dar atenção às pessoas
em detrimento de Deus, torna-se ainda mais forte. É quando o padre vê diante de
si aquela multidão, que tanto parece uma plateia, que lhe parece evidente que
eles devem ser capazes de ouvir o que ele tem a dizer, de — pior ainda — ouvir
sua voz. Ora, a voz que deve ser ouvida é a da Igreja, a de Deus, certamente
não a do padre (ou do comentarista, ou da Pastoral Litúrgica, ou de quem quer
que seja que tenha uma voz particular). E, finalmente, é por se formar este
estranho círculo que surge a tentação de “equilibrá-lo”, forçando a assembleia
a um protagonismo exagerado em que das respostas passa-se a gestos (“balançar
folhetinhos”, etc.) e dos gestos a, quase, coreografias. Ao mesmo tempo, o presbitério
nega seu nome e se enche de leigos, “equilibrando” os dois lados dos estranhos
parênteses de gente dentro dos quais jaz uma mesa, usada à guisa de altar e
apontando para as pessoas em volta ao invés de para Deus.
Vejamos, então, como a tecnologia
moderna literalmente amplia e ilumina estas tentações, afastando ainda mais a
liturgia do seu verdadeiro espírito e tornando ainda mais difícil a
participação real e frutuosa, que ocorre não quando nos mexemos muito, mas
quando nos unimos ao Sacrifício Redentor, ali tornado novamente presente de
forma incruenta para nossa santificação.
Para isso, convém dar uma régua
de medição. A mais perfeita, claro, é a que o próprio Espírito Santo suscitou
na Igreja ao longo dos séculos: a tecnologia da arquitetura sacra clássica,
perfeitamente adequada à liturgia e a seu espírito.
Quando visitamos uma igreja
pré-moderna, vemos alguns elementos arquitetônicos comuns, perfeitamente
adequados à liturgia. O primeiro deles é a posição do altar. O altar-mor, em
uma igreja clássica, é o ponto focal de toda a edificação; quando entramos na
igreja o nosso olhar imediatamente é atraído para a extremidade oposta à da
porta, em que o altar-mor, como uma imensa escada, aponta o caminho do Céu. No
primeiro degrau, o túmulo dos mártires (dentro da pedra do altar há sempre
relíquias de mártires); no segundo, o próprio Senhor Sacramentado, descido dos
Céus, para nos “puxar para cima”; nos demais degraus, os focos de luz das velas
apontando sempre para cima, até encontrarmos, no lugar para onde somos chamados
a ir, a imagem de alguém que, nas palavras de São Paulo, “venceu a corrida”: um
Santo, que um dia esteve como nós diante do altar e hoje, pela graça de Deus,
está sobre ele.
Recuando deste ponto focal
absoluto, que é o altar-mor, descemos três degraus “humanos”; assim como os
“degraus” gigantescos do altar que só as almas sobem, os três degrauzinhos do
presbitério, que o corpo do padre agindo na Pessoa de Cristo sobe e desce
durante a Missa, fazem parte desta escalada do profano ao Sagrado, do
transitório ao Permanente, do finito ao Infinito. O padre sobe os degraus como
um ser humano que se aproxima de Deus, e os desce como Deus que se aproxima dos
homens; fala a Deus e fala aos homens, virando-se para o altar ou para a
assembleia.
Recuando ainda um pouco,
encontramos a Mesa de Comunhão, em que ocorre para nós o mais íntimo e (quando
percebemos o que realmente ocorre) apavorante encontro do humano com o Divino:
a recepção do Corpo e Sangue do próprio Senhor, do mesmíssimo Corpo que nasceu
da Virgem Maria e foi elevado na Cruz. A Mesa de Comunhão parece uma cerca, mas
não é. Na verdade, ela é uma rampa de lançamento, verdadeiro degrau inicial
daquela mesma escada. Ela separa a nave da igreja, lugar onde fica o profano
que busca o Sagrado, do presbitério, lugar do Sagrado que vem ao encontro do
profano. Ao mesmo tempo, quando nos ajoelhamos junto a ela para receber o
próprio Senhor sacramentado, somos elevamos pela graça divina e escalamos,
puxados por Deus, aquela escada mística de Jacó cuja figura nos contempla do
altar-mor.
Aquém da Mesa de Comunhão,
estamos na nave da Igreja: um amplo e altíssimo espaço vazio (a adição de
bancos e cadeiras é muito recente), coberto apenas de luz e de cor. Dos lados,
abaixo dos vitrais, outros altares, versões pequenas do altar-mor, servem para
que o Santo Sacrifício possa ser oferecido simultaneamente por vários
sacerdotes; neles, ainda, a Missa de um padre solitário não interfere na
meditação de quem esteja a rezar sozinho ou a adorar o Santíssimo Sacramento.
Cada fiel é livre para participar de uma das várias Missas, cada uma em um
ponto da liturgia, ou para ir de Consagração em Consagração, ou ainda para
ignorá-las todas, ou mesmo participar à distância de todas. Não há nem pode
haver ali nenhum círculo fechado; ao contrário, cada fiel está aberto para
todos os lados, e vários focos de abertura do temporal ao Eterno — em cada
altar lateral — brilham simultaneamente. É um lugar de encontro, um
“parlatório” múltiplo e variegado dos muitos homens e o único Deus, em que cada
homem não deixa de ser homem, mas não faz nem de si mesmo nem dos demais homens
o foco de sua atenção.
Acima de todos a luz do sol
entra, filtrada e colorida pelas imagens sacras dos vitrais. A luz serve para
que possamos enxergar. Mas numa igreja clássica há dois tipos de luz: a que
Deus faz, que entra pelos vitrais, e a que o homem faz para Deus, concentrada
no altar, na forma de velas. A luz de Deus é mais forte e mais bela, mas a
Igreja, na sua sabedoria, a filtra em cores. Os vidros são todos coloridos,
porque a luz nua do sol ilumina demais. Não convém haver tanta luz, porque a
igreja não é tanto lugar de apreciação sensível quanto de apreciação mística: o
que acontece de mais importante ali é invisível, e a beleza das luzes coloridas
dos vitrais só faz sublinhar o Mistério maior que ocorre sobre o altar, ao
emoldurá-lo em cores. Do mesmo modo, as paredes de uma igreja clássica muitas
vezes são revestidas de pinturas coloridas, que se unem à luz dos vitrais para
nos dar ao mesmo tempo uma verdadeira aula — pois cada figura que ali vemos tem
seu sentido e sua simbologia — e um banho de beleza em estado bruto. A vista da
nave da igreja, a vista do lugar de onde nós, leigos profanos, nos aproximamos
do Infinito e Sagrado, é a mais bela vista do mundo. Na verdade, a beleza é bem
maior vista da nave que do próprio presbitério, de onde praticamente só se pode
ver o próprio altar, aquela escada altíssima que lembra ao humano sacerdote o
quanto ele tem que subir, o quanto lhe falta escalar para alcançar a santidade
daquele outro servo de Deus cuja imagem está no mais alto dos degraus.
Na própria nave, vemos ainda dois
púlpitos, um de cada lado. São balcõezinhos altos, para uma só pessoa, donde o
sacerdote pode falar e ser ouvido, por estar acima das cabeças dos presentes. O
som do púlpito alcança a igreja inteira, e se a multidão estiver — como deve
estar — silenciosa, cada palavra dita dali é ouvida sem dificuldade por todos
os presentes.
Por cima da porta principal, com
a mesma tecnologia do púlpito, o coro ao mesmo tempo esconde as faces e eleva
as vozes dos cantores e organista: a música parece vir de toda parte e de lugar
nenhum ao mesmo tempo. Dos lados do coro, mas fora da nave e muito mais altos,
os sinos das torres levam para o mundo lá fora a mensagem de salvação da
Igreja.
Vejamos agora como a tecnologia
moderna perverteu aquilo que o Espírito Santo, ao longo dos séculos, suscitou
na Igreja.
A tecnologia mais problemática
para a liturgia é a eletricidade. Costumo dizer que se acabasse a eletricidade,
a imensa maioria dos problemas litúrgicos desapareceria instantaneamente; quem
nunca passou pela experiência de ir à Missa e, devido a um blecaute, ter a
deliciosa surpresa de participar de uma Missa infinitamente mais adorável e
santificante, celebrada sem eletricidade para atrapalhar?
A eletricidade tem duas maneiras
principais de estragar a liturgia, amplificando as tentações até o ponto em que
elas escondem a liturgia e fazem crer que outra coisa, completamente diversa, esteja
a acontecer ali.
A primeira delas é a amplificação
sonora. Os efeitos da amplificação sonora sobre a liturgia são devastadores.
Como vimos anteriormente, as soluções da tecnologia clássica da Igreja fazem
com que — havendo silêncio da assembleia — a voz do sacerdote falando do
púlpito, bem como as vozes do coro e do órgão, cheguem sem problemas a todos os
ouvidos. Não é, todavia, audível o que o padre diz quando está diante do altar.
O próprio Concílio de Trento anatemizou quem dissesse que estas palavras
deveriam ser audíveis pela assembleia, porque não se trata de um detalhe
irrelevante, mas de um ponto de teologia importantíssimo: o que o padre diz
junto ao altar não é para nossos ouvidos; ele está se dirigindo a Deus, não a
nós. Ele fala, sim, em nosso nome, mas as palavras que enuncia são as palavras
da Igreja, que temos no Missal. Ele não diz outra coisa, não inventa nem pode
inventar nada, e, aliás, por que o faria, se é só Deus quem o ouve? Quem quer
saber o que ele diz pode e deve abrir o Missal e ler, sem ter como cair na
tentação de achar que é para si que fala o sacerdote.
Já, por outro lado, as palavras
de Deus para o homem, na Liturgia da Palavra e na homilia, são e devem ser
audíveis: para isso serve a posição elevada do púlpito, que ao mesmo tempo faz
chegar a voz do sacerdote a toda a igreja e força a assembleia ao silêncio.
Quando a voz do sacerdote é
amplificada, desaparece completamente a distinção que já se tornara difícil de
perceber com a estranha moda de colocar o padre atrás do altar, eliminando a clareza
de seus atos ao não mais fazê-lo, como manda o Missal, voltar-se para a
assembleia ou para o altar. Tudo o que o sacerdote diz passa a ser enorme,
altíssimo, tonitruante e, pior de tudo, aparentemente voltado aos fiéis. É como
se ele estivesse falando com eles todo o tempo, quando na verdade ele é o
intermediário entre eles e Deus, e ora fala pela Igreja a Deus, ora fala por
Deus a Seu povo. Com um microfone, a tendência é desaparecer o sacerdote — que
age na Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo — e surgir a pessoa do padre Fulano,
que deveria desaparecer completamente durante a Santa Missa para dar lugar ao
Cristo.
Um frade já idoso uma vez
comentou comigo o quanto lhe agastava ver que nas fotos dos convites das raras
ordenações de sua congregação nunca o novo padre aparecia com o Cálix, como se
costumava fazer. Ao contrário, disse-me ele, todos posam para a foto com um
microfone na mão Poucas coisas são tão representativas da nossa sociedade do
espetáculo quanto o fetiche do microfone; as pessoas gostam de ver-se
fotografadas segurando um microfone à frente dos lábios, e dar ao vulgo um
microfone é incitá-lo a falar. O mesmo ocorre, é claro, com os sacerdotes, que
são seres humanos como todos nós, mas que sofrem tentações muito mais fortes
por serem troféus muito maiores para os demônios. O microfone é uma tentação
enorme, que muitas vezes se disfarça e se desculpa. E aí temos o padre que
manda um exército de ministros extraordinários ilicitamente distribuir o
Santíssimo em tempo recorde nas Missas dominicais, para em seguida sentar-se e
ficar por vinte minutos falando platitudes ao microfone, convencido pela
própria vaidade e pelo demônio de estar ajudando na ação de graças dos fiéis.
Ora, ele está calando a voz do Senhor ao encher a nave com a própria voz, e
está pregando novamente na cruz as mãos do Senhor ao substituir ilicitamente
suas mãos sacerdotais, ungidas pela Igreja para distribuir a graça divina,
pelas mãos profanas de leigos, com a desculpa do tempo gasto… que ele mesmo
gasta com seu discurso vazio ao microfone logo em seguida.
Do mesmo modo, com a voz
amplificada é facílimo e comuníssimo que o padre invente, parafraseie e
improvise ao longo de toda a liturgia. De um inútil e desrespeitoso “bom-dia”
no início da Missa a longas elucubrações e paráfrases em cada um dos já
demasiados “ad libitum” da liturgia paulina, o prazer de ouvir a própria voz
leva o padre a cair na tentação de calar a Igreja para falar pessoalmente, de
negar o Cristo para ele mesmo crescer na atenção da assembleia, substituindo e
adicionando suas palavras todo o tempo.
A amplificação ainda apresenta
outro fator tremendamente perturbante: o som — como o do coro na tecnologia
litúrgica clássica — vem de todos os lugares e de lugar nenhum. Todos ouvem a
voz tonitruante que sai de inúmeras caixas de som, mas descobrir de onde ela
vem originalmente, onde está a pessoinha que fala ao microfone, demanda
atenção. Com isso, a liturgia — já desprovida dos marcadores visuais e
auditivos mais evidentes, como mencionei acima — torna-se algo ainda mais
confuso. O som amplificado é um nevoeiro auditivo, que obnubila qualquer
direcionamento da atenção ao fazer com que toda voz venha de todos os lados ao
mesmo tempo.
Em uma situação moderna normal em
que haja amplificação — um espetáculo musical, por exemplo — é normalmente
claro de onde vem o som, por se tratar de um monólogo completamente natural. É
uma pessoa, ou uma banda, que dirige a uma plateia o som que produz. Já na
liturgia, como vimos, o som só deveria ser dirigido do altar à assembleia parte
do tempo; o sacerdote é, ele também, membro da assembleia, e é em nome dela que
ele se dirige ao altar. O distante sussurro do sacerdote junto ao altar, com
uma assembleia perfeitamente silenciosa diante do magno Mistério que ali se torna
presente, deveria ser para todos nós ocasião de unirmo-nos em oração a ele, de,
nós também, virarmos para o altar e rezar. Do mesmo modo, a voz dele vindo do
púlpito deveria nos levar a prestar atenção e fazer silêncio.
Mas quando o que temos é uma voz tonitruante
que vem de todos os lados ao mesmo tempo, a tendência humana é, ao contrário,
diminuir a atenção; a voz se torna um ruído ambiente, não uma voz que fala
conosco. Afinal, quem fala conosco se dirige a nós, e a incorporeidade daquela
voz a torna impessoal.
Quando diminuímos a atenção,
fatalmente surgem conversas paralelas, que por sua vez levam a aumentar ainda
mais o volume daquela voz que vem de todos os lados ao mesmo tempo, tornando-a
ainda mais confusa pela soma de dezenas de cochichos paralelos igreja afora.
Vejam que armadilha demoníaca:
para o padre, o microfone tenta a aumentar-se e diminuir ao Cristo, a fazer da
liturgia um seu espetáculo pessoal; já para a assembleia, a amplificação faz
com que o padre desapareça e com que o que ele diz seja algo a que se presta
menos atenção.
E a amplificação artificial, para
piorar a situação, não se restringe ao sacerdote. Do mesmo não-lugar de que vem
a voz do padre, vêm as vozes, violões e percussões da bandinha de música, que
igualmente cai na tentação de se achar em um espetáculo, que já vitimara o
padre. E tome cantor falando platitudes ao microfone com a desculpa (para si
mesmo) de estar ajudando as pessoas a fazer ação de graças, e tome tocador de
violão a fazer arpejos durante a Consagração para “criar um climinha”, como se
ele fosse um pianista de cinema mudo. E tome invencionices melódicas, rítmicas
e harmônicas, normalmente ainda pioradas quando, por qualquer razão que seja, a
bandinha está em um lugar em que ela esteja à vista da assembleia. A tentação
de ser a estrela, de dar um espetáculo, é uma tentação demasiadamente presente
para que possamos nos dar ao luxo de ignorá-la como vem sido feito na maior
parte das paróquias.
E, finalmente, ainda há as outras
vítimas do microfone: as pessoas que são levadas, por razões pseudo-pastorais,
a ir lá na frente falar alguma coisa (leituras, comentários, avisos, tanto
faz), numa espécie de contraponto geralmente forçado, constrangido e tímido aos
espetáculos em competição do padre e da bandinha. Estes falam longe do
microfone ou falam alto demais, usam enunciações e prosódias estranhas, e
fazem, em geral, com que se perca ainda mais o senso de sacralidade da
liturgia. Já é ruim que haja o que foi descrito acima; quando se tem
regularmente breves interrupções em que alguém tem que aprender em pleno vôo
como se usa o microfone, a pouca fluidez litúrgica que ainda sobrava em geral
desaparece completamente, fazendo com que recrudesçam os papos paralelos
(tornados possíveis pelo volume da amplificação) e diminua ainda mais a atenção
geral ao que realmente está acontecendo ali.
Finalmente, a eletricidade ainda
tem efeitos sonoros decorrentes não da amplificação, mas do uso de aparelhos de
ar condicionado e ventilador. Estes aparelhos produzem um ruído a que se chama
“ruído branco”, que consiste em um ruído contínuo e aleatório que se distribui
por um amplo espectro. O ruído branco tem a propriedade de fazer desaparecer,
por mistura, a clareza dos demais sons. É por isso que é dificílimo ouvir o que
dizem na mesa ao lado em um restaurante lotado, por exemplo: o ruído branco
resultante da soma de todas as conversações faz com que aquela voz a um metro
de distância, que ouviríamos perfeitamente em um ambiente silencioso,
simplesmente desapareça. Na igreja, o ruído branco dos ventiladores ou ar
condicionado faz com que as conversas cochichadas sejam inaudíveis, e não
atrapalhem individualmente quem está ao redor. Ora, isso faz com que haja mais
e mais conversas cochichadas, o que aumenta ainda mais o volume do ruído
branco, pela soma dos cochichos ao ruído das máquinas, e mistura mais ainda o
som do microfone, levando os técnicos a aumentá-lo ainda mais, o que por sua
vez leva as pessoas a ter ainda menos pejo de conversar, etc., num ciclo
vicioso antilitúrgico verdadeiramente demoníaco. Comparem isso com uma igreja
forçada ao silêncio para ouvir a voz em amplificação que vem do púlpito, e fica
fácil entender do que estou falando.
A outra maneira pela qual a
eletricidade estraga a liturgia é pela iluminação elétrica. A tecnologia
luminosa clássica da Igreja consiste, como vimos anteriormente, na combinação
da luz branca e nua, porém pequena, das velas com a luz forte, porém matizada e
colorida dos vitrais. As velas atraem a atenção para o altar, enquanto as imagens
dos vitrais suscitam a meditação em quem as contemplar, enquanto inundam a
igreja de uma luz que — como o som do coro — é suave e parece vir de todos os
lados ao mesmo tempo.
Já a iluminação elétrica que hoje
encontramos na maior parte das paróquias é extremamente semelhante à que vemos,
por exemplo, em agências bancárias: uma luz forte, branca, dura e brutal, que
ilumina tudo por igual e a tudo faz igual. A nave da igreja torna-se igual ao
presbitério, que se torna igual ao altar (aliás desaparecido na forma de uma
mesa, muitas vezes difícil de encontrar). As velas desaparecem, com seu brilho
muitas vezes ofuscado até mesmo pelos reflexos das luzes fortíssimas do teto
nos seus próprios candelabros, por exemplo. Todo o simbolismo das velas se
perde, toda a riqueza das mensagens de luz dos vitrais desaparece, e a igreja
toda se vê igualada, toda ela perfeitamente iluminada e perfeitamente indigna
de atenção, como uma agência de banco. Cada sujeirinha do chão é visível, mas o
altar é algo que se precisa procurar (mormente quando o som também vem de todos
os lados ao mesmo tempo!). As roupas das pessoas da assembleia aparecem
plenamente, com suas cores e texturas a despertar curiosidade, à luz brutalista
da eletricidade, mas as vestes litúrgicas — que numa igreja clássica
refletiriam sozinhas as luzes das velas e atrairiam a atenção de
todos — parecem uma decoração de um canto da igreja; um espetáculo de teatro
teria uma diferença de iluminação entre o palco e a plateia, mas nas paróquias
de hoje o presbitério e a nave são banhados pela mesma luz dura e feia, sem que
se saiba o que é o quê.
A luz elétrica, assim, como a
amplificação artificial do som, mistura tudo e elimina as diferenças,
trabalhando ativamente para frustrar a liturgia da Igreja. Se temos consciência
destas tentações que venho de descrever, fica mais fácil tentar vencê-las. Se
não tivermos, todavia — e não a ter é a regra hoje em dia — a tendência é
cairmos cada vez mais fundo nelas.
Que São Gregório Magno, São Pio V
e São Pio X nos ajudem a vencê-las, sempre!
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