Padre Paulo Ricardo
Recebemos nas redes sociais,
alguns meses atrás, o seguinte comentário, como resposta ao nosso
último texto sobre o latim na liturgia:
O sacerdote orar em latim, de
costas para os fiéis… Misericórdia! Minha avó contava que tinha pessoas que
oravam o terço durante a missa, outras dormiam, ou seja, não
participavam de nada do mistério da missa…
Sim, você certamente já ouviu,
também, algum comentário do gênero. Infelizmente, é essa a impressão que muitas
pessoas, se não a maioria, têm sobre como era rezada a Santa Missa antes da
reforma litúrgica após o Concílio Vaticano II. Não é raro que se ouça aqui e
ali, inclusive a respeito das mudanças que sofreu o rito romano, alguém comparar
a Missa de São Pio V a uma espécie de “Velho Testamento” da liturgia católica.
Antes, o povo inteiro estava “à espera”, ansiando pelo acesso “pleno” aos
mistérios sagrados, que se ocultavam sob uma língua incompreensível, um
sacerdócio afastado do povo, uma Igreja “fria” e “imobilizada”, que não se
comunicava efetivamente com os fiéis... Até que veio o Novus Ordo.
Por trás desse preconceito com
a antiga liturgia e os antigos costumes católicos está uma visão de progresso
malsã, que não raro pode colocar em xeque a própria infalibilidade da Igreja. Afinal,
se Pentecostes foi “adiado” até 1969, por assim dizer, onde estava o Espírito
Santo nesse meio tempo? Como fica a promessa de Nosso Senhor de que estaria com
seus discípulos omnibus diebus, “todos os dias”, usque ad consummationem
saeculi, “até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20)?
O Papa emérito Bento XVI se
manifestou diversas vezes contra essa visão, primeiro como Cardeal — em O Sal
da Terra, por exemplo: “Uma comunidade põe-se a si mesma em xeque quando
declara como estritamente proibido o que até então tinha tido como o mais
sagrado e o mais elevado, e quando considera, por assim dizer, impróprio o
desejo desse elemento” (Rio: Imago, 2005, p. 141) — e também depois, já Pontífice,
ao autorizar amplamente a celebração da Missa antiga: “Na história da Liturgia,
há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura”, disse ele na ocasião. “Aquilo
que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também
para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo
prejudicial”. Noutras palavras, se não conseguimos apreciar a liturgia
antiga, o problema não era com a Igreja; é conosco.
Nossos antepassados conviveram
por mais de 400 anos com a liturgia do Concílio de Trento e, considerando a
quantidade de santos que se formaram na escola dessa divina liturgia, chega a
soar como um insulto a acusação de que, ao longo desse tempo, as pessoas “não
participavam de nada do mistério da missa”.
Comece-se pelo fato de
que o conceito que temos de participação(1) na
liturgia é muitíssimo deficiente, quando não completamente equivocado.
É deficiente porque,
hoje, tendemos a pensar que só participa bem a pessoa que sabe todas
as respostas da Missa de cor, que sabe entoar todos os cantos
que o ministério de música puxar, que sabe a hora certa de
ficar de pé, sentar e ajoelhar-se etc., quando, na verdade, uma pessoa
pode estar fazendo tudo isso sem adentrar minimamente o mistério que está
diante dela. A esse respeito, valeria a pena recordar, retomando uma lição
de Santo Tomás de Aquino (cf. STh II-II 83, 13), que na
oração a atenção às palavras é menos importante que a atenção
à presença de Deus. Na liturgia, que é a oração pública da
Igreja, deve dar-se o mesmo: a ideia é que estejamos concentrados no
Senhor; todo o resto é acessório e subordina-se a isso.
Mas tantas vezes nosso
conceito de participação na liturgia é também equivocado. Quando a
Constituição Sacrosanctum Concilium, do Vaticano II, fez referência
“àquela plena, consciente e ativa participação (actuosam participationem)
nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige e que é,
por força do Batismo, um direito e um dever do povo cristão” (n. 14), é difícil
imaginar que os Padres conciliares tenham pensado, por exemplo, em palminhas
efusivas, performances coreográficas e uma assembleia dialogante, a todo o
tempo respondendo ao sacerdote como num programa de auditório...
Não, esse nunca foi o sentir
da Igreja a respeito da divina liturgia. Tomar parte nos santos mistérios não
significa posicionar-se como uma Marta agitada ao redor do altar, procurando
algo que fazer. A atividade dos fiéis na igreja consiste muito mais na atitude
contemplativa de Maria, que se põe “aos pés do Senhor para ouvi-lo falar” (Lc
10, 39).
Aqui é importante destacar o
seguinte: cada um participa da Missa na medida de sua capacidade e da forma que
lhe for mais conveniente. Não é correto impor a todo o povo fiel uma forma
única de tomar parte nos mistérios sagrados, como se todas as outras fossem
erradas… O respeito e a reverência, evidentemente, são devidos sempre, mas eles
não se manifestam apenas no fiel que, com o Missal ou um folheto em mãos,
responde ao padre, acompanha todas as orações e penetra-lhes o significado.
Antigamente, era mesmo muito comum que as pessoas recitassem o Rosário durante
a Missa ou praticassem outra forma de devoção que as ajudasse a acompanhar os
santos mistérios.
Sim, nossa visão atual de
participação litúrgica deplora isso (o ar escandalizado do comentário que transcrevemos
acima não nos deixa mentir), mas o costume era encarado com bastante
naturalidade há não muito tempo. Fosse a Via-Sacra, algo sobre a Paixão do
Senhor ou orações afins, o importante é que os fiéis, na quietude de seus
bancos, se unissem ao sacerdote que oferecia o santo Sacrifício, oferecendo-se
a si mesmos “em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus” (Rm 12, 1). Com a
palavra a esse respeito, o Papa Pio XII:
Não poucos fiéis, com efeito,
são incapazes de usar o “Missal Romano” ainda quando escrito em língua vulgar;
nem todos são capazes de compreender corretamente, como convém, os ritos e as
cerimônias litúrgicas. A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão
vários e dissemelhantes que nem todos podem igualmente impressionar-se e serem
guiados pelas orações, pelos cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum.
Além disso, as necessidades e as disposições das almas não são iguais em todos,
nem ficam sempre as mesmas em cada um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal
preconceito, que tantos cristãos não podem participar do sacrifício eucarístico
e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente que o podem fazer de outra maneira,
e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus
Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma
difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza
(Mediator Dei, n. 98).
O problema, portanto —
voltemos ao ponto inicial —, não era lá atrás com a Igreja; o problema é hoje,
conosco. Essas práticas de piedade a que Pio XII faz referência, muito comuns
no rito antigo, só floresceram graças a uma atmosfera de silêncio sagrado que
agora, infeliz e tragicamente, já não existe na maior parte das liturgias
católicas — seja como consequência de aspectos da própria reforma de 1969, seja
como efeito da dissipação geral em que nos encontramos.
Tomar parte nos santos
mistérios não significa posicionar-se como uma Marta agitada ao redor do altar,
procurando algo que fazer.
O que fazer, então? Pedir ao
Papa que baixe um decreto mandando todos “fecharem a matraca” durante a Missa?
De acordo com o Cardeal Robert Sarah, em seu O Poder do Silêncio, essa está muito longe de ser a
solução para a nossa crise atual:
O silêncio é uma atitude da
alma. Ele não pode ser imposto por decreto sem parecer exagerado, vazio e
artificial. Nas liturgias da Igreja, o silêncio não pode ser uma pausa entre
dois rituais; ele em si é um ritual por completo, que a tudo envolve. Trata-se
do tecido a partir do qual devem ser feitas todas as nossas liturgias. Nada
nelas deve interromper a atmosfera silenciosa que constitui sua configuração
natural (n. 250).
O Prefeito do Culto Divino
fala aqui a partir de sua consciência de fé, pois o silêncio brota naturalmente
dos corações que se sabem na presença de Deus — e aqui está o grande segredo de
tudo. Silenciar, para os animais, pode ser muito bem um simples “calar a boca”;
para os seres humanos, porém, a ausência de barulho não quer dizer muita coisa.
Quantas vezes, por exemplo, mesmo mudos, não nos encontramos interiormente
agitados, com um sem-número de sons e imagens na cabeça? Se não houver um
treinamento contínuo fora da liturgia, um verdadeiro cultivo da vida interior,
nem sacerdotes nem o povo fiel serão capazes de reproduzir um silêncio
autêntico e sagrado na Santa Missa.
É preciso também ter ao menos
uma noção básica do que acontece na liturgia — coisa que, infelizmente, muita
gente não tem. Curiosa e paradoxalmente, um pretexto muito difundido para se
acabar com o latim na liturgia era de que o povo não entendia nada
da Missa — ou, como colocou nosso comentarista, as pessoas “não participavam de
nada do mistério”. Cabe-nos perguntar, porém, se agora, “rasgado o véu do
templo”, alguma coisa realmente mudou. Será que passamos a
entender mais, a participar melhor da Missa?
O Pe. João Batista Reus reagia
a esse argumento em seu Curso de Liturgia dizendo o seguinte:
“A missa é uma ação, não um curso de instrução religiosa. No Calvário
não havia explicações. O altar é um Calvário. Todo cristão sabe o que
significa: imolar-se” (3.ª ed. Petrópolis: Vozes, 1952, p. 53).
Pois bem, é disso que se
trata. Sabemos o que significa imolar-se? Ou nos animalizamos a
ponto de perder até isso?
Quando as Missas públicas
voltarem ao fim da quarentena (em alguns lugares já estão retornando),
acerquemo-nos do altar de nossas igrejas como quem se aproxima do Calvário, da
Cruz de Cristo, da solene imolação que nos deu a salvação. É
dessa consciência que precisamos para participar bem da
liturgia e comportar-nos melhor na igreja. Todo o resto, principalmente o
“auê”, pode ficar muito bem, obrigado, do lado de fora.
Notas
- Há quem se pergunte se o correto é assistir ou participar da
Santa Missa. Sobre isso, leia-se esse artigo do site Veritatis Splendor. . De qualquer modo, há uma miríade de verbos que podem ser
usados nesse contexto: a Missa se reza, se diz (no
caso do padre), se escuta ou se ouve (no
caso dos fiéis), dela se participa e a ela se assiste,
e não há problema no uso de nenhum desses verbos, desde que sejam
entendidos em um sentido concorde com o que orienta a Igreja sobre a santa
liturgia.
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